Cultura como eixo norteador do currículo do Projeto EJA-BH
Segundo a Proposta Político Pedagógica do Projeto EJA/BH, a cultura está definida como eixo norteador, assumindo a concepção – explicitada na Proposta Curricular da Escola Plural, em seu Caderno 2 – de que os indivíduos se constituem como sujeitos socioculturais a partir das interações com seu grupo social. A mesma Proposta aponta para “os processos culturais como eixo do processo educativo” e define a cultura como o conjunto de significados partilhados por diferentes grupos de pessoas em conseqüência de suas relações com o mundo e entre si. Nesse sentido, o Projeto EJA-BH considera que os educandos, como homens e mulheres de determinada classe, religião, raça e história de vida vivenciam diversos espaços formativos e constroem formas culturais de viver, ler, conceber, conhecer e dar sentido ao mundo. Segundo Brandão (2002, p.39), “é isso que torna o homem um ser histórico, um ser que não está na história, mas que a constrói como produto de um trabalho e dos significados que atribui ao fazê-lo”.
No entanto, os educandos jovens e adultos trazem a marca da exclusão social e vivenciam processos de dominação em que seus conhecimentos, crenças e valores são desconsiderados, sendo imposta uma única forma de conceber e refletir o mundo, o que reforça e sustenta as desigualdades sociais. Diante disso, aponta-se que a Educação de Jovens e Adultos tenha como eixo central um trabalho político no domínio da cultura. Uma vez que a educação é vista como processo de formação humana plena (ARROYO, 2005), a escola, como afirma o Parecer CME-BH 093/02, é concebida como espaço sociocultural, em que os sujeitos compartilham saberes, estabelecem relações e vivenciam experiências culturais significativas a fim de recriar ativamente a cultura. Nesse sentido, o currículo do Projeto EJA-BH deve se estruturar a partir das próprias experiências de vida e visões de mundo dos educandos, possibilitando que esses sujeitos ajam sobre a cultura presente (BRANDÃO, 2002); entendam e confrontem as condições de produção das diversas formas de conhecer e viver em nossa sociedade desigual; se apropriem da cultura do grupo social ao qual pertencem; analisem como se dá a própria participação na elaboração da cultura; ampliem suas formas de compreender e agir no mundo e se reconheçam como sujeitos criadores de cultura no processo histórico em que se inserem.
Pensar a Cultura como eixo norteador do trabalho pedagógico exige, ainda, que o currículo se construa em diálogo com outros espaços e tempos formativos vivenciados pelos educandos. Segundo Schmelkes (1996), as políticas públicas de EJA que ocorrem de forma articulada com outros movimentos possibilitam aos educandos, de forma mais efetiva, a participação na luta pela afirmação de seus próprios direitos. O Projeto EJA-BH, ao objetivar construir e consolidar a Educação de Jovens e Adultos na cidade e se pautar nas necessidades de aprendizagem dos sujeitos educandos, assume tais premissas e aponta para construção de um currículo articulado com os diversos espaços formativos da comunidade, da cidade e dos movimentos sociais dos quais os sujeitos educandos participam.
Dessa forma, a proposta curricular objetiva que a discussão de cultura embase, sustente e perpasse todo processo educativo, se estruturando a partir das dimensões formativas dos sujeitos educandos. Tendo como base o Parecer CME-BH 093/02 e a experiência acumulada na Rede Municipal, na EJA, definimos que as dimensões formadoras que irão compor a proposta curricular são: Trabalho, Formação Cidadã, Linguagens, Diversidade nas Relações Sociais, Tempo e Memória, Espaço e Cidade, Expressões Artísticas e Corporeidade.
Dimensões Formadoras
As dimensões formadoras constituem-se referenciais para o desenvolvimento do processo educativo, rompendo com a organização curricular centrada nas disciplinas divididas em segmentos, que nunca dialogam e são baseadas em uma percepção fragmentada dos saberes e do mundo. O Projeto EJA-BH, nesse sentido, propõe que as dimensões formadoras sejam trabalhadas de forma articulada a partir das questões colocadas pelos educandos e educadores e da “problematização da realidade” (FREIRE, 2005), de forma a possibilitar a construção de novos conhecimentos e formas de intervenção no mundo, com autonomia, criticidade e cooperação.
1 - Trabalho
O trabalho é uma dimensão importante da formação humana dos educandos jovens e adultos. Segundo Aranha (2003, p.105), constitui um lócus de formação, “fonte de aquisição de conhecimento, de formação de valores e condutas, nem sempre reforçando a autonomia do trabalhador, mas influenciando decisivamente na sua constituição enquanto cidadão e sujeito histórico-sócio-cultural”. Reconhecer, valorizar e dialogar com essa dimensão formativa da vida adulta é essencial para que os educandos “se entendam no mundo e na sociedade” (ARROYO, 2007) e estabeleçam relações entre trabalho e escola (ALVAREZ LEITE, 1996).
Entendemos que o desenvolvimento dessa dimensão deve partir da reflexão sobre a própria condição dos educandos enquanto trabalhadores e sujeitos de direitos. É necessário que a escola promova o dialogo entre o conhecimento escolar e o conhecimento produzido/adquirido no mundo do trabalho, permitindo a construção de novos conhecimentos, que contribuam para a superação dos aspectos deformadores do trabalho (ARANHA, 2003). Nesse sentido, é também essencial que os educandos problematizem as relações de trabalho na sociedade capitalista, bem como as questões étnico/raciais e de gênero envolvidas, na perspectiva da afirmação dos direitos do trabalhador, da valorização das culturas e da construção de novas formas de organização da produção baseadas na cooperação e justiça social.
Nessa perspectiva, a escola deve proporcionar aos educandos experiências em que discutam e vivenciem processos que visem a efetivação de seus direitos como trabalhador. Ao mesmo tempo, os educandos devem investigar e conhecer as diversas formas de organização do trabalho dos grupos sociais na história, enfocando, de forma privilegiada, a trajetória dos coletivos aos quais pertencem. A análise do regime escravo vivenciado no Brasil, a resistência dos índios e negros à escravidão, as condições históricas que resultaram na abolição da escravidão e na predominância do trabalho assalariado, bem como suas conseqüências para os dias atuais também são questões essenciais no processo formativo dos educandos. Além disso, uma vez que a vida dos trabalhadores é afetada pelos contextos sociais que vivenciamos, é preciso que sejam tematizadas as relações entre desenvolvimento tecnológico, trabalho, sustentabilidade ambiental e qualidade de vida no âmbito de nossa sociedade e de outras, em diversos tempos e espaços.
Por fim, é necessário ampliar a discussão do trabalho para além da dimensão do emprego, de modo que os educandos compreendam que tudo o que os seres humanos produzem é fruto do trabalho e possui as marcas de seu grupo cultural (ANTUNES, 2000). Nesse sentido, devem vivenciar experiências em que conheçam e valorizem as produções culturais de seu grupo, bem como de outros, em diversos tempos e espaços.
2 - Diversidade nas relações sociais
Consideramos que a constituição do povo brasileiro é marcada pela diversidade e pluralidade cultural. Isso significa que nos constituímos por coletivos sociais e culturais que vivenciam experiências múltiplas e variáveis e constroem histórias, formas de ser e estar no mundo e saberes específicos que devem ser reconhecidos e respeitados. A diversidade cultural de nossa sociedade (negros, mulheres, homossexuais, entre outros) questiona os padrões únicos de homem, mulher, política, religião e cultura que nos são impostos.
Segundo Gomes (1999), ao enfocarmos a diversidade devemos considerar que as diferenças são construídas historicamente nas relações sociais e nas relações de poder. Nesse sentido, falar de diversidade não diz respeito somente ao reconhecimento da diferença (GOMES, 1999), para além disso, significa analisar as relações entre grupos culturais e sociais, pois muitas vezes, a rotulação do outro como diferente serve a propósitos de dominação e negação de direitos. Nesse sentido, é necessário reconhecer que, devido ao fato de a sociedade brasileira ter sido fundada sob a desigualdade social, racial, de gênero, crenças e de sexo, foram elaboradas representações sociais negativas desses coletivos, aos quais pertencem os sujeitos da Educação de Jovens e Adultos e, conforme Arroyo (2005), tem por conseqüências o preconceito e a negação de direitos.
A escola, por sua vez, é uma instituição social em que é possível o encontro com as diferenças, em seus diversos modos de significar o mundo (GOMES, 1999). Consideramos que cabe a ela discutir e problematizar a discriminação racial contra negros e povos indígenas, bem como em relação à mulher, a crenças religiosas e opções sexuais, contribuindo para desconstruir estereótipos que permeiam a imagem desses grupos e, ao mesmo tempo, promover experiências baseadas na ética, no respeito e na valorização das diferentes culturas.
É importante que os educandos analisem as condições históricas em que foram e são produzidos estereótipos em relação aos diversos grupos sociais; reconheçam as diversas manifestações de racismo em nossa sociedade e suas implicações na vida dos sujeitos, nos que são discriminados e nos que realizam tal ato; conheçam os aspectos legais relativos aos diversos tipos de preconceito no Brasil; problematizem e desconstruam imagens veiculadas pela mídia em relação aos negros, indígenas e mulheres; construam identidades e relações positivas com seus saberes populares, sua história pessoal e coletiva; conheçam e analisem as influências culturais de vários povos na formação da sociedade brasileira: indígena, africana, européia, asiática; posicionem-se contra qualquer tipo de discriminação, reconhecendo e respeitando a diversidade étnica da sociedade brasileira; conheçam culturas de outros povos ou nações em diferentes tempos e espaços; participem de movimentos sociais de afirmação de direitos de coletivos, etc.
3 - Formação Cidadã
O Projeto EJA-BH aponta que o desenvolvimento da dimensão da formação cidadã é essencial para que os educandos jovens e adultos se percebam enquanto sujeitos de direitos, capazes de reconstruir a história e a cultura. Essa dimensão indica que a construção do cotidiano escolar deve possibilitar a participação social e política dos educandos na própria organização do trabalho pedagógico, bem como em espaços formativos da comunidade e da cidade e em movimentos sociais que objetivem a efetivação de direitos negados.
Consideramos importante que os educandos entendam e vivenciem a cidadania enquanto participação social e política que envolve o posicionamento e intervenção crítica diante de diversas questões políticas da realidade local e mais ampla. A fim exercê-la de forma efetiva, devem compreender as questões sociais, econômicas e culturais de nossa sociedade, estabelecendo relações entre o local e dimensões mais amplas do país e do mundo; conhecer e reconhecer seus direitos ao lazer, saúde, moradia, vida e trabalho dignos, participação democrática e aprendizagem permanente, relacionando aspectos legais com as vivências cotidianas; entender aspectos da organização política do Brasil, identificando formas de consolidar e aprofundar a participação democrática no país, etc.
4 - Tempo e memória
O tempo e a memória são categorias que provocam inúmeras discussões e indagações em diversas áreas do conhecimento. Na sociedade contemporânea, novos tempos e espaços são recriados na perspectiva de buscar solucionar os problemas inerentes à vida moderna, dentre eles o uso do tempo subjetivo. Não podemos descartar o fato de que o ser humano está envolvido em diversas temporalidades e que essas estão intimamente relacionadas com a subjetividade, a identidade, a memória e a diferença. Temos, pois que tempo e memórias são indissociáveis. Dessa forma, o tempo subjetivo é inerente à intimidade do sujeito, diretamente ligado à memória (BAPTISTA; PEREIRA, 2007).
Por isso é que a dimensão Tempo e Memória torna-se importante enquanto instrumento educativo no processo de formação dos educandos do Projeto EJA-BH, visto que o tempo, tratado na sua indissociabilidade com a memória, reveste-se de valor singular para a construção do conhecimento histórico e para a compreensão da historicidade humana. Assim, o sujeito pode ter a compreensão dos processos de formação das diversas etapas que o levam a se reconhecer na sua subjetividade.
O educando, visto como sujeito de sua própria história, não está e nem vive um tempo linear, mas, sim, está envolto em várias temporalidades, que por muitas vezes se desencontram e outras tantas vezes se negam. É dessa forma que recuperar e memória deve ser componente da reconstrução de sua história, fazendo-o sentir-se parte integrante dela. A memória, então, passa a ser uma categoria que não se constitui um retorno ao passado, mas uma maneira de que o educando, ao retornar à ele, adquira novos olhares que o auxiliem para repensar o presente em que está inserido e planejar o seu futuro.
É intuito, então, do Projeto promover
ações para nutrir e valorizar a memória, sobretudo aquela que espelha o caráter coletivo, a nação, a identidade étnica, religiosa ou de grupo [...] A memória histórica ou coletiva, repete-se, é fundamental para o sentimento nacional, para a consciência de classe, étnica ou das minorias, sendo constitutiva das lutas contra a opressão ou a dominação. Valorizada, então, quer por sua participação na construção da identidade e da comunidade, quer pelo papel que desempenha no fortalecimento e emancipação dos fracos, ela não pode nem deveria ser esquecida. (Lovisolo, 1989)
Esta dimensão é, portanto, fundamental na construção da identidade dos educandos jovens e adultos do Projeto EJA-BH, uma vez que possibilita trabalhar a memória dos diferentes sujeitos no cotidiano.
Dessa forma, partilhar as vivências que os educandos tiveram em um passado distante ou não, possibilita o resgate de sua auto-estima, contribuindo para desfazer o estigma de incapazes que muitas vezes eles trazem para o espaço escolar. É fundamental reconhecer que sujeitos jovens e adultos têm muito a contribuir para a construção cotidiana de nossas práticas escolares, principalmente conferindo a eles maior protagonismo na sua trajetória escolar, ao valorizar os seus saberes e experiências.
Além disso, é importante o desenvolvimento de algumas dinâmicas em que a expressão dos educandos é garantida através da fala e da escuta; em que há uma releitura da identidade pessoal a partir da exposição de objetos e situações que fizeram parte da história de vida dos educandos. Além disso, é necessário à escola perceber que os educandos, ao rememorarem suas experiências passadas, nas diversas situações de ensino-aprendizagem, o fazem para (re)significar a situação presente. Desse modo, dialogar com as memórias trazidas pelos educandos contribui para a construção de conhecimentos significativos.
A proposição de atividades que valorizam a experiência dos educandos se faz necessária pelo simples fato de que nossos educandos, embora excluídos do sistema regular de ensino, desenvolveram ao longo da vida outros saberes que podem ser compartilhados com colegas e educadores. É importante incentivá-los a estabelecerem uma relação mais próxima com a escola reconhecendo-se como membros ativos na construção das práticas escolares cotidianas. É fundamental o desenvolvimento de diferentes estratégias com o objetivo de captar os problemas e o cotidiano do educando trabalhador, resgatar a história de vida dos pais, daqueles moradores do interior, da mobilidade social na própria cidade, na constituição de novos bairros e ocupação do espaço.
5 - Espaço e cidade
O espaço, da mesma forma que o tempo, constitui uma categoria que carrega, na sua compreensão, inúmeras interpretações. Da mesma forma, a cidade moderna é um objeto que vem sendo pensado sob diferentes olhares, tanto no campo teórico, quanto nos aspectos referentes aos graus de abstração e de generalização.
Para alguns pensadores clássicos, a cidade, tida como espaço coletivo, é vista como o espaço da produção e reprodução do capital, expressando as matizes da sociedade capitalista. Ainda, ela aparece como substrato da vida social, acumulando e concentrando parcelas significativas da população. Outros pensadores, vêem a cidade a partir do que chamaram Sociologia Urbana, para os quais a cidade produz cultura urbana que ultrapassa seus limites geográficos, atuando por meio da propagação do estilo de vida urbano. Para um terceiro grupo, o espaço urbano é socialmente produzido e que, dessa forma, assumem diferentes configurações, de acordo com os modos de organização socioeconômica e de controle político. (SANT'ANNA).
Várias outras abordagens poderiam ser, aqui, citadas, principalmente aquelas que analisam a cidades e seus espaços a partir da globalização, fenômeno tão presente na atualidade. Mas o que importa, mesmo, é perceber o “que” e o “como” a cidade e o uso dos espaços urbanos carregam em sim um caráter formador. Não desconhecemos, por outro lado, que é na cidade e seus espaços que se expressam muitas das identidades do sujeito da EJA. A pobreza crescente, o desemprego, a exclusão social, a violência, a criminalidade, dentre outras são algumas das marcas que nossos educandos trazem para as salas de aula
É certo que a condição de ser alfabetizado já não é suficiente para viver numa metrópole contemporânea, o que se assevera ao pensarmos na perspectiva de um desenvolvimento sustentável para as cidades. Portanto, o caminho é garantir que a educação deva servir, também, para a promoção da cidadania ativa, auxiliando no combate a exclusão social, expressa nos espaços urbanos. Para isso, nossos educandos, que são moradores da cidade, devem dela usufruir e necessitam conhecê-la profundamente, para que nela possam intervir e discutir os assuntos que tão de perto interferem no seu cotidiano.
Outros aspectos precisam, também, ser considerados no processo educativo. Um deles é que as cidades e seus espaços se constituem em centros de informação sobre elas próprias, além de se configurar como locais onde circulam informações, ou seja, constituem-se em elementos importantes para a formação dos indivíduos. Um segundo aspecto diz respeito a cidade ser produtora de novas formas de sociabilidade e interação social, concentrando e conectando a diversidade cultural e social no nosso país. Sobre esse ângulo concretiza-se as possibilidades da escola de cumprir uma de suas funções sociais, que é a de ser espaço de socialização.
As regras de convivência de um grupo, comunidade ou instituição são históricas e culturais e estão em permanente processo de reelaboração. Sendo assim, é fundamental investir na formação dos educandos, ensinando-os a buscar novas formas de participação social que os levem a serem sujeitos ativos, conscientes de seus deveres e comprometidos com a conquista dos direitos humanos. A prática participativa permite questionar os valores e os interesses que sustentam a sociedade.
O reconhecimento pelos educandos dos diversos espaços da cidade para além dos contornos do bairro, do trajeto dos postos de saúde, dos grupos comunitários etc, é uma experiência que possibilita aos sujeitos a compreensão da cidade como espaço formador. É na cidade que as pessoas nascem, crescem, formam famílias, criam os filhos, trabalham, criam laços afetivos e sociais. É na cidade, também, que as pessoas constroem a sua história buscando através das vivências no coletivo-cidade e em coletivos específicos, a definição de valores, crenças, hábitos, construindo, assim, a sua cidadania. A cidade deve ser também, um espaço para se identificar as diferentes formas de se viver e também um espaço participativo que permite questionar valores e interesses que sustentam a sociedade.
Acreditamos assim, ser fundamental que o processo de participação dos educandos do Projeto EJA-BH extrapole os espaços educativos onde funcionam as turmas e também os seus espaços de convivência cotidiana. Assim, a cidade precisa invadir as salas de aula por meio dos recursos variados de comunicação em massa, bem como os educandos precisam transitar pelos diversos espaços da cidade (cinemas, museus, praças, parques etc), deles se apropriando, refletindo sobre sua ocupação e buscando formas de torná-los cada vez mais acessíveis a todos.
6 - Linguagens
A educação tem com uma de suas funções levar o educando a adquirir competências linguísticas para se relacionar na sociedade, bem como levá-lo a produzir e a interpretar textos, quaisquer que sejam esses. Em outras palavras, é seu papel trabalhar com a linguagem.
A linguagem, no que concerne aos seres humanos, é uma atividade de comunicação complexa. É um produto cultural e variável, podendo expressar diferentes sentidos, conforme as situações e experiências onde ocorre. Ela, também, é construída pelo próprio homem, ocorrendo simbolicamente através de convenções criadas. Isso significa dizer que a linguagem pode ser decomposta em unidades para ser interpretada. (ALMEIDA, 2006).
Entendida como instrumento de comunicação entre os sujeitos, a linguagem é um meio utilizado para a interação social. É através dela que possibilita-se o pensamento e a sua expressão, sendo que essa expressão ocorre de acordo com o sentido que queremos dar à nossa comunicação, a qual acontecerá por meio de textos (sejam da ordem escrita, simbólica, oral ou imagética).
Portanto,
ao se construir um texto, o produtor usa estratégias para obter a aceitabilidade do recebedor. Entre elas estão a cooperação que espera de seu interlocutor, a relevância das informações que transmite e a maneira como essas informações são veiculadas, isto é, as qualidades do discurso: precisão, clareza, coerência e concisão. (ALMEIDA, 2006)
Fica evidente que existem, então, diferentes textos e para diferentes linguagens, o que vai variar de acordo com a intenção que temos para a ação comunicativa e dos meios que utilizamos para fazê-la.
Sendo assim, discorreremos sobre algumas dessas linguagens, ressaltando que nos ateremos àquelas que ponderamos serem as mais significativas para o cotidiano do sujeito da Educação de Jovens e Adultos. Portanto, a dimensão formadora Linguagem deve considerar a importância do desenvolvimento das práticas pedagógicas com a utilização das linguagens aqui elencadas, mas sem desconsiderar outras que se fizerem necessárias para o mundo do educando.
Ler e escrever em uma sociedade alfabetizada, além de um direito legítimo, é um direito sobre uma necessidade básica. A importância da leitura e da escrita não se restringe apenas à aquisição de habilidades ligadas às coisas práticas. Significa condições para a emancipação individual. Sendo assim, as condições de vida dos alfabetizandos, as representações sociais construídas por eles e as hipóteses que formulam no aprendizado da leitura e da escrita são aspectos importantes a serem considerados no processo de alfabetização dos adultos.
Outra questão fundamental em relação à alfabetização diz respeito à perspectiva do letramento – alfabetizar letrando. Segundo Magda Soares, alfabetização e letramento são processos distintos, mas interdependentes e até mesmo indissociáveis. Define-se alfabetização como o processo de aquisição do conjunto de técnicas – procedimentos e habilidades – necessárias para a prática da leitura e da escrita. Chama-se letramento a utilização efetiva dessas técnicas em práticas sociais que envolvem a língua escrita. Nessa perspectiva, a grande questão que se coloca é que não basta apenas ensinar a ler e escrever; é preciso, também, levar os sujeitos a fazerem uso da leitura e da escrita e se envolverem em práticas sociais de leitura e de escrita.
Dessa forma, propomos que as práticas de leitura e escrita desenvolvidas com os educandos do Projeto EJA-BH proporcionem a eles uma reflexão sobre a construção social das práticas de leitura e de escrita, ensinando-os a intervir no seu processo de aprendizagem para que as tarefas de ler e escrever os levem ao desenvolvimento pessoal. É importante destacar que esse conhecimento tem estreita relação com a cultura escrita, que diz respeito às ações, valores, procedimentos e instrumentos que constituem o mundo letrado. Sua aprendizagem envolve participação em práticas sociais que têm presente, direta ou indiretamente, a escrita e a leitura em seus diferentes usos e funções sociais. Problematizar as relações de poder envolvidas nas práticas sociais de leitura e escrita também é importante, na perspectiva de que os educandos investiguem os valores, conhecimentos e concepções de mundo envolvidos nas diferentes práticas de letramento .
Além dessas questões pertinentes à língua, discutimos a inserção dos conhecimentos matemáticos no campo do letramento, perspectiva que vem sendo chamada no Brasil de numeramento . Muitos estudos têm mostrado uma série de habilidades, conceitos e procedimentos matemáticos que a população jovem e adulta brasileira não domina – ou domina de forma precária e limitada – mesmo que eles façam parte de suas práticas sociais, sejam demandas da sociedade contemporânea e/ou estejam previstos nas orientações curriculares.
Fonseca (2005) aponta duas perspectivas para o numeramento:
o numeramento como o conjunto de práticas que envolvem conhecimento, registro, habilidades e modos de pensar dos procedimentos matemáticos – o numeramento é visto como um fenômeno paralelo ao fenômeno do letramento. (FONSECA, 2005, p.15)
o numeramento como um conjunto de habilidades, de estratégias de leitura, de conhecimentos etc., que se incorporam ao letramento – supõe-se que o letramento também envolva o numeramento, de modo que o sujeito possa fazer frente às demandas da leitura e escrita de nossa sociedade. (FONSECA, 2005, p.16)
A matemática envolvida nas práticas sociais se coloca não somente em termos de conhecimentos, habilidades e procedimentos “puramente” matemáticos, mas nos próprios modos de organização e valorização dessas práticas em nossa cultura (Fonseca, 2005). Dessa forma, propomos que a articulação entre escolarização e numeramento deve se apresentar como uma dimensão formadora dos sujeitos da educação de jovens e adultos na busca de um processo de aprendizagem que contribua para a ampliação da capacidade de inserção e atuação cidadã de nossos educandos em nossa sociedade.
Entendemos, portanto, que o letramento e o numeramento devam se constituir uma parte da dimensão formadora que denominamos Linguagem, visto que elas são práticas sociais recorrentes no cotidiano dos nossos educandos e, entendidas como tal, ferramentas comunicativas fundamentais para a inserção desses sujeitos nos espaços que freqüentam. Além dessas duas vertentes da linguagem, chamamos a atenção para a necessidade de se desenvolver o trabalho pedagógico no Projeto EJA-BH com base, principalmente, em duas outras linguagens: a científica e a tecnológica.
A linguagem científica tem algumas características diferentes daquilo que chamaremos de “linguagem comum”. Ela se estabeleceu durante o desenvolvimento científico da humanidade e visa registrar, com maior clareza, o conhecimento. Ela apresenta alguns aspectos que não são, usualmente, empregadas no cotidiano, maioria das pessoas. Daí surge a dificuldade em se produzir um texto puramente cientifico, calcado no fato de que as pessoas, nem sempre, realizam esse exercício.
Compete à escola preparar os educando para ler, compreender e estar apto, quando for o caso, a produzir textos de caráter científico, desenvolvendo a habilidade para o domínio semântico e sintático, bem como as implicâncias das diferentes possibilidades semânticas do vocabulário empregado nos conceitos, o que é requisitado de um cientista no seu trabalho, cujas exigências se encontram em um grau mais elevado em relação ao produto do texto comum. (ALMEIDA, 2006).
Enquanto na linguagem comum predominam narrativas que relatam seqüências lineares de eventos, na linguagem científica são tratados eventos estáticos com enfoque nas relações entre os processos. A linguagem científica é, portanto, predominantemente estrutural, estável e linear, apresentando uma ordem seqüencial. A impessoalidade é outra característica da linguagem científica. Isso significa que importa menos o sujeito que aquilo ou o que se diz. No entanto, na linguagem cotidiana, o discurso é espontâneo e usam-se outros recursos de ordem não-verbal, como expressão facial, gestos, entonação, tom de voz, entre outros, que contribuem para a realização da comunicação e para o sentido que se deseja para o enunciado. A linguagem científica exige maior formalidade no emprego da linguagem escrita. Há que se obedecer a certas normas e preceitos gramaticais relacionados ao domínio das convenções e a norma ortográfica.
Segundo pesquisas realizadas no Brasil nos anos de 2005 e 2006, hoje, 97% das casas possuem aparelho de televisão, mais de 90% têm rádio, enquanto 49,7% contam com telefone fixo, 68% da população possui telefone celular e mais de 20% das casas têm computadores.
As TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) estão inseridas na maioria das atividades realizadas atualmente, desde as redes telefônicas ao envio de uma carta, desde a consulta ao saldo bancário a uma pesquisa escolar. A informática é uma importante ferramenta para facilitar a comunicação entre as pessoas e para melhorar a eficiência das empresas e instituições públicas. (UNESCO, 2008).
É exigência do mundo globalizado saber onde o conhecimento está e cabe às pessoas serem protagonistas da própria história e não consumidores de informações repassadas por outros. Assim, é necessário que os cidadãos estejam incluídos nesse mundo digital, integrados às tecnologias da informação e da comunicação. Essa é a única maneira para que eles participem do mundo que está baseado no conhecimento.
Esse é o desafio colocado pela revolução tecnológica, o de compreender o surgimento de uma nova cultura, “que exige uma adaptação nos modos de ver, ler, pensar e aprender. [onde] a escola hoje se constitui, especialmente entre as crianças pobres, no “espaço privilegiado” de acesso às novas formas de conhecimento trazidas pela tecnologia.” (UNESCO, 2008).
Dessa forma, incorporar as alterações provocadas pelas TICs no chão da escola e no processo de ensino-aprendizagem torna-se um papel a ser encarado por todos e o Projeto EJA-BH não desconsidera a importância de assumir essa nova linguagem no processo educativo dos seus educandos, promovendo ações que permitam que esses sujeitos possam usufruir dessa nova cultura. Além disso, é importante que a escola trabalhe as práticas de leitura e escrita relacionadas a tais tecnologias de forma a possibilitar aos educandos utilizá-las de forma autônoma e crítica.
7 - Corporeidade
Os conhecimentos e representações sobre o corpo, bem como as diversas formas de experenciá-lo se constroem por meio das relações sociais e constituem o que chamamos de cultura corporal. Nesse sentido, nós somos corpo e é por meio dele que nos constituímos, enquanto sujeitos, em nossas identidades, histórias e aprendizados.
Conceber os sujeitos jovens e adultos em sua totalidade, rompendo com a fragmentação tão presente em nossa sociedade e em nossas escolas, que consideram de forma separada as dimensões cognitivas, emocionais e corporais é um desafio para a Educação de Jovens e Adultos. Nessa perspectiva, os processos de aprendizagem devem ocorrer a partir do corpo e não considerá-lo somente como um mediador.
Ao mesmo tempo, cabe à escola possibilitar aos educandos ampliarem seus modos de conhecerem, conceberem e lidarem com o corpo, a partir das visões que construíram em relação à aparência, sexualidade e reprodução, hábitos de alimentação, capacidade física, papel do esporte, do repouso e do lazer, saúde, padrões de beleza, etc. O conhecimento da cultura corporal deve também ser instrumento para maior compreensão de nossa realidade social e humana.
Entendemos que os educandos devem se perceber enquanto corpo-sujeito, inseridos em uma cultura. Para isso, é preciso que a escola proporcione experiências em que os sujeitos jovens e adultos compreendam suas histórias de vida, que se dão na corporeidade. Por meio dos processos educativos, os educandos devem conhecer e vivenciar manifestações corporais de diversos grupos culturais, enfocando, de forma especial, a diversidade cultural de nosso país; resgatar as vivências de seu grupo cultural em relação a danças, músicas, trabalho, etc. e, ao mesmo tempo, pesquisar como se dão essas manifestações em outras culturas. É necessário também que vivenciem possibilidades de criar coreografias, explorando seu potencial comunicativo e conheçam os aspectos socioculturais da dança e da música. Além disso, considera-se importante que os sujeitos participem de experiências que possibilitem o trabalho com a timidez, a auto-estima, o convívio e o conhecimento do próprio corpo.
É também por meio dos processos educativos que os educandos devem se apropriar dos direitos e deveres do cidadão em relação ao lazer e à promoção da saúde, conhecendo as formas de reivindicá-lo. Faz parte também da educação para saúde, entender como funciona o corpo e utilizar desse conhecimento para tomadas de decisões importantes, assim como, pesquisar textos científicos que auxiliem na compreensão de termos e conceitos em relação ao corpo humano.
Problematizar a forma como o corpo é tratado e concebido em nossa sociedade também é função social da escola. Os educandos devem compreender os comportamentos corporais frente às mudanças tecnológicas na contemporaneidade; problematizar o modelo de imagem corporal veiculado pela mídia, baseado em um único padrão estético e corporal, bem como o significado da prática do esporte, analisando o fenômeno do esporte espetáculo em nossa sociedade.
8 - Expressões artísticas
A dimensão formadora “Expressão Artística” se filia à concepção da arte como uma linguagem – arte visual, dança, música, teatro, etc – que possibilita formas específicas de os sujeitos se expressarem, compreenderem o mundo e com ele se relacionarem e, também, como objeto histórico, contextualizado nas culturas. O trabalho com essa dimensão deve partir das experiências de arte vividas pelos educandos, possibilitando o diálogo com o conhecimento artístico acumulado historicamente e com as novas expressões estéticas.
Nesse sentido, os educandos devem explorar as possibilidades de diferentes linguagens artísticas (artes visuais, dança, música, teatros) e, ao mesmo tempo, compreender e utilizar a arte como linguagem, ampliando sua capacidade de expressar idéias, sentimentos e vivências. Assim, é preciso que experimentem diferentes materiais e procedimentos artísticos (artes, visuais, dança, música, teatro) utilizando-os em trabalhos pessoais, interpretando-os e contextualizando-os culturalmente. Em todo o processo, é necessário que os educandos construam uma relação de valorização e auto confiança com o trabalho pessoal, respeitando a própria produção artística.
Da mesma forma, é importante que os sujeitos jovens e adultos compreendam a arte enquanto construção cultural e histórica. Para isso, devem investigar, compreender e valorizar as manifestações artísticas dos coletivos aos quais pertencem, bem como apreciar as produções artísticas em sua diversidade de contextos, nos diferentes grupos culturais, incluindo a contemporaneidade e a arte brasileira. Nesse contexto, é necessário que vivenciem a arte como possibilidade de construção de novas formas de vivenciar e entender o mundo.
Outra perspectiva importante refere-se à educação do olhar. Perceber os significados estéticos e artísticos em diversos espaços do cotidiano, como a indústria cultural, meio ambiente, práticas populares, etc, bem como compreender e avaliar criticamente os tipos diferentes de imagens, presentes nos meios de comunicação, no cinema, na publicidade faz parte do processo de formação humana dos educandos. Por fim, um aspecto essencial é a apropriação da arte no espaço da cidade, de forma a possibilitar aos sujeitos freqüentarem os diferentes eventos culturais, museus, peças teatrais, cinema, shows de música, etc.
Fonte: Material retirado do PPP da EJA/BH
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